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A atuação do Conselho Tutelar diante da precarização das políticas sociais e da influência do modelo ideal de família

O Conselho Tutelar é um órgão municipal e autônomo de cunho social que busca “zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente”, nos termos do art. 131 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sendo composto por cinco conselheiros e equipes técnica e administrativa. Suas atribuições estão definidas no art. 136 do ECA, que ressalta o papel do Conselho Tutelar no atendimento não apenas de crianças e adolescentes, mas também de seus pais e responsáveis, sendo encarregado de orientar e prestar apoio às famílias, bem como de requisitar serviços públicos de caráter socioassistencial a elas. 

No entanto, em que pese o Conselho Tutelar ter sido pensado como uma entidade que oferece suporte aos núcleos familiares que se encontram em situações de vulnerabilidade, não possuindo, portanto, função jurisdicional, é inegável a influência da lógica punitivista do Judiciário em sua atuação prática e nas próprias denúncias recebidas pelo órgão, promovidas pela sociedade. 

A precarização das políticas públicas e as forças jurídico-policiais

Inicialmente, verifica-se que o atual contexto de desmonte das políticas sociais, oriundo de uma lógica neoliberal que vê a área de assistência como um gasto e não como um investimento, limita as possibilidades de atuação dessa entidade. Com poucos recursos nas áreas direcionadas à seguridade social, o Conselho Tutelar acaba por formar alianças com órgãos de justiça e de polícia, os quais, por sua vez, não sofrem com a mesma redução de despesas que os setores apontados, já que possuem o papel de garantidores da segurança, valorizada pela perspectiva do neoliberalismo. 

Nesse sentido, os Conselhos Tutelares, embora possam ter estratégias e posicionamentos múltiplos e divergentes entre si, a depender do município e da movimentação política local, apresentam em comum a carência de equipamentos assistenciais que permitiriam uma maior gama de abordagens menos severas. Em razão disso, a atuação desses órgãos é, em muitos casos, voltada e até mesmo substituída pelo acionamento das forças jurídico-policiais, cujos procedimentos e discursos são marcados pela ideia da punição e do julgamento, ao invés do apoio e da proteção social, como bem apontam Nascimento e Scheinvar (2007). Contudo, a falta de investimento social não se mostra o único desafio para uma atuação mais acolhedora do Conselho Tutelar. 

As expectativas depositadas nos profissionais e a escuta viciada

Conforme defendido por Nascimento, Jashar e Barbosa (2018), há uma expectativa por parte da sociedade de que profissionais, como psicólogos(as), médicos(as) e outros especialistas em escuta, sejam capazes de localizar a verdade em uma fala ou em uma determinada situação. Seria como se esses e essas profissionais desfrutassem de um saber avançado que os tornassem capazes de encontrar o real teor de um acontecimento no qual eles e elas não estavam presentes. 

Por conseguinte, o seu posicionamento, obtido por meio dessa análise de fatos, é tido como uma verdade absoluta na percepção dos demais na busca por uma resposta. Contudo, no decorrer do exercício profissional e da experiência no desenrolar dos casos, cenários como esse podem acarretar em uma atuação automática, na qual o sujeito, que deveria estar qualificado para obter uma atuação crítica diante de uma conjuntura, acaba agindo de modo mecânico e remoto, em detrimento dos fatos levantados em sua percepção, por acreditar que a verdade estará enlaçada em uma dada frase e em determinados dizeres.

É importante destacar que o processo de escuta é uma das principais atividades desempenhadas em um Conselho Tutelar para averiguar os fatos que circundam um determinado caso. Destarte, essa escuta, quando viciada, ou seja, quando permeada por processos automatizados e não direciona de fato a atenção para o sujeito e para as suas subjetividades, acarreta em grandes impactos na busca da melhor solução para um caso analisado por esse Conselho. Deve ser sublinhado ainda que a equipe que compõe o órgão é formada não só por profissionais técnicos, que são, ao menos em tese, capacitados para realizar uma escuta qualificada, mas também por conselheiros, pessoas eleitas e que não necessariamente têm uma formação adequada para isso. Desse modo, para além de eventuais automatizações que podem perpassar a atuação desempenhada pelos profissionais da escuta, a falta de experiência e tecnicidade de alguns dos conselheiros em situações sensíveis como as que eles devem lidar pode  acarretar em  prejuízo à criança ou ao adolescente em questão.

Cabe aqui ressaltar que esses impactos podem até mesmo resultar em decisões com consequências mais duradouras, como a aplicação, de modo precipitado, do acolhimento institucional de uma criança, em que ela poderá ser privada do contato materno e/ou paterno medida esta que, embora prevista como excepcional (art. 101, §1º, ECA), é por vezes adotada antes de se esgotarem as alternativas menos gravosas. Com efeito, essa escuta viciada se mostra apenas mais um reflexo de uma visão que influencia toda a sociedade em relação aos indivíduos que comumente são atendidos por esse órgão. 

As denúncias de supostas ameaças à coesão social

Como já indicado, o Conselho Tutelar se destina à proteção de crianças e adolescentes, priorizando, portanto, a manutenção e a reestruturação do núcleo familiar no qual esses jovens estão inseridos. Consequentemente, as famílias a que essa atuação se dedica são principalmente aquelas que estão, ou aparentam estar, em situação de fragilidade e vulnerabilidade social, isto é, aquelas cujos direitos sociais, que deveriam ser garantidos pelo Estado, carecem de proteção. 

Ocorre que a esses grupos mais vulneráveis, ou aos vistos como tal, é atribuída, pela sociedade, uma característica de risco e até mesmo de ameaça à coesão social (Marques, 2019). Isso, por sua vez, interfere tanto na escuta desempenhada pelos profissionais que compõem o Conselho, como já mencionado, quanto no conteúdo das denúncias, que são promovidas pela população, bem como por equipamentos de saúde, educação e, até mesmo, por entidades de assistência social.

No que tange às denúncias, há no âmbito social uma lógica punitivista que sempre induz indivíduos a acreditarem que a repreensão e a sanção são ideais para qualquer sujeito que tomou uma atitude minimamente considerada censurável. Há ainda aqueles que defendem a punição como um meio educativo, uma oportunidade para que o sujeito repense sobre seus atos e não volte a cometê-los novamente, caso contrário, a punição deverá ser ainda mais severa. No entanto, esse método se revela, na realidade, uma tentativa de conformar, pelo medo, quem foge ao padrão socialmente imposto, não havendo, efetivamente, um intuito educacional. 

Concomitantemente a isso, ocorrem as denúncias, que são condutas que contribuem para esse sistema punitivista, justamente por terem o intuito de que alguém seja penalizado por meio delas. Essa notificação a órgãos como os Conselhos Tutelares, que pode ocorrer de modo anônimo, elabora uma sensação no sujeito denunciante de que ele estaria contribuindo para a eficácia da legislação brasileira, bem como de que ele está desempenhando o seu papel como cidadão, como afirma Nascimento (2014). O denunciante, que em sua maioria é alguém próximo, como o vizinho, o professor, algum parente ou ainda um profissional que atende o núcleo familiar, peca ao não se sensibilizar sobre as consequências que poderão atravessar essa família, atentando-se apenas para seu dever de fazer o melhor perante o sistema judicializante e não se atendo para as subjetividades e complexidades que perpassam a relação intrafamiliar, que não podem ser percebidas a partir de contatos pontuais, embora muitas denúncias surjam dessa forma.

Um atravessamento de raça e classe

Um outro ponto importante de se destacar é o perfil de crianças, adolescentes e famílias acompanhadas pelo Conselho Tutelar e que, para este órgão, devem ser penalizados. Para melhor compreensão desse perfil, Lemos (2003, apud Lemos, Scheinvar e Nascimento, 2014), elencou alguns dos principais casos analisados pelo Conselho Tutelar em Assis (SP), entre os anos de 1994 e 1996, e que podem ser compreendidos como perfis não restritos a esse município, sendo assim, em sua maioria são: crianças periféricas que residem em casas de madeira; adolescentes convivendo em famílias monoparentais com chefia materna; crianças que não têm o rendimento escolar acompanhado por nenhum dos pais; crianças criadas pelas avós devido à ausência dos pais; adolescentes com frequência irregular na escola; dentre outras. 

Segundo dados divulgados pelo IBGE em 2020, 71,7% das evasões escolares de pessoas entre 14 e 29 anos, são vivenciadas por jovens negros (pretos ou pardos). Ademais, a mesma pesquisa apontou que jovens brancos passam, em média, 10,4 anos na escola, enquanto os negros passam 8,6 anos, ou seja, jovens negros ficam, em média, 2 anos a menos na escola quando comparado com jovens brancos. A maioria afirma que deixou a escola devido à necessidade de ter que exercer alguma atividade para auxiliar nas despesas de casa. Diante dessas conjunturas, é notório que há um atravessamento de raça e classe em que cada um dos exemplos citados ocupa, cabendo aqui algumas reflexões: quem são os jovens que precisam sair da escola para trabalhar? E quem são as crianças cujas mães não conseguem acompanhar o rendimento escolar e são assim denunciadas aos Conselhos Tutelares?

Conforme dados apontados anteriormente, o racismo e a vulnerabilidade econômica podem refletir em larga escala nas complicações educacionais, como evasão e reprovação, as quais são objeto de denúncia perante o Conselho Tutelar. Crianças e adolescentes que vivenciam contextos de violência racial e de exclusão socioeconômica podem limitar suas expectativas perante suas relações com o ambiente em que frequentam, podendo acarretar no desinteresse pela escola ou, até mesmo, em um aluno com o perfil insurgente. 

Em detrimento dessas circunstâncias, as escolas, orientadas pelos próprios conselheiros e respaldadas pelo ECA, recorrem ao Conselho Tutelar para informar questões que interferem no processo de escolarização da criança ou do adolescente. Contudo, há em muitos Conselhos, e no imaginário social como um todo, uma crença de que a estrutura familiar ideal seria a de uma família burguesa e branca em que ambos os pais participam ativamente das atividades realizadas pelos filhos. Quando um núcleo familiar se distancia dessa ordenação, mesmo que pouco, é considerado como uma família desestruturada e que requer uma atenção por parte das autoridades. 

No entanto, a ação que a partir disso é tomada por essas autoridades, insensíveis à existência e à funcionalidade de estruturas familiares que escapam ao dito ideal, por vezes se revela ainda mais danosa ao núcleo alvo da intervenção, ocasionando até mesmo na separação precipitada entre seus membros. 

Conclusão

Em face dessa mentalidade elitista e racista, que influencia na denúncia oferecida pela sociedade e na escuta dos profissionais, e da, já aludida, precarização dos setores assistenciais, que limita as possibilidades de atuação e encaminhamento promovidas pelo Conselho Tutelar, as famílias acometidas pela desigualdade, que deveriam receber orientação e auxílio desse órgão e de políticas públicas para se reerguer, tornam-se ainda mais desprotegidas (Marques, 2019), além de serem individualmente culpabilizadas por um problema de natureza social. Nessa perspectiva, embora o Conselho Tutelar tenha atribuição essencial na garantia dos direitos das crianças e adolescentes, as mencionadas problemáticas de caráter financeiro e psicossocial se apresentam como consideráveis obstáculos para uma atuação verdadeiramente inclusiva e protetiva em favor das famílias mais vulneráveis. 

Clara Viana Lage Meirelles

Paulo Henrique Vieira de Jesus

Fontes

BRASIL. IBGE – Pesquisa nacional por amostras de domicílios, 2019. PNAD Educação 2019: Mais da metade das pessoas de 25 anos ou mais não completaram o ensino médio. IBGE, 2020. Disponível em:  https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/ 2013-agencia-de-noticias/releases/28285-pnad-educacao-2019-mais-da-metade-das-pessoas-de-25-anos-ou-mais-nao-completaram-o-ensino-medio Acesso em: 02 mai. 2021.

BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 26 abr. 2021.

LEMOS, Flávia Cristina Silveira, SCHEINVAR, Estela, & NASCIMENTO, Maria Lívia do. (2014). Uma análise do acontecimento “crianças e jovens em risco”. Psicologia & Sociedade, 26(1), 158-164. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000100017

MARQUES, Camilla Fernandes et al. O que Significa o Desmonte? Desmonte Do que e Para Quem?. Psicol. cienc. prof, Brasília , v. 39, n. spe2, e225552, 2019.  

NASCIMENTO, Maria Lívia, JASHAR, Paloma L. R. , BARBOSA, Marianne C.  Proteção e escuta no espaço do conselho tutelar: relações com a judicialização da vida. Arquivos Brasileiros de Psicologia n. 70, 2018, 92-104.

NASCIMENTO, Maria Lívia. Pelos caminhos da judicialização: lei, denúncia e proteção no contemporâneo. Psicologia em Estudo,19(3), 2014, 259-467.

NASCIMENTO, Maria Lívia, SCHEINVAR, Estela. De como as práticas do conselho tutelar vêm se tornando jurisdicionais. Aletheia, n.25, p.152-162, jan./jun. 2007.

 

 

Ilustração: Marilia Ferrari/Gênero e Número
Disponível em: <http://www.generonumero.media/retrato-das-maes-solo-na-pandemia/>. Acesso em 20 mai. 2021.