Desde o final de 2019, o Brasil e o mundo são assombrados pela pandemia causada pelo Novo Coronavírus. De acordo com The Center for Systems Science and Engineering at Johns Hopkins University, até 25 de março de 2021, 301 mil pessoas morreram pelo Novo Coronavírus no Brasil. Nesse mesmo dia, declarou o vice-presidente da república: “pô, ultrapassou o limite do bom senso”. Uma fala tão trágica que dispensa qualquer comentário e evidencia o descaso estatal com o sofrimento de diversas famílias que perderam um – ou mais de um – ente querido. Menos de dois meses depois, em 05 de maio de 2021, o país já alcançou a marca de 414.399 vítimas fatais, de acordo com a mesma fonte. Neste contexto, ainda, é de suma importância refletir sobre algumas questões: “quem são as vítimas fatais da COVID-19?”, “todas as mortes são enlutadas?”, “toda a população possui condições de praticar o recomendado isolamento social?”.
Os índices de mortes por COVID-19 não podem ser analisados de forma neutra e acrítica. Isso porque elas têm raça e classe. A primeira vítima da pandemia no Rio de Janeiro foi uma mulher de 63 anos, cujo nome não foi divulgado pela família, empregada doméstica, hipertensa e diabética, contaminada pela patroa, que acabara de voltar de uma viagem à Itália. Segundo familiares, a idosa morava em Miguel Pereira, no sul fluminense, e percorria a distância de 120 quilômetros semanais para chegar ao trabalho, no luxuoso Alto Leblon – o metro quadrado mais valorizado no país. Devido à distância, ela morava no emprego durante a semana, rotina que cumpria há 10 anos. Ao voltar da Itália, a patroa aguardava o resultado do teste do Novo Coronavírus, quando a empregada chegou para trabalhar, normalmente, no domingo. Já na segunda, a vítima passou mal, oportunidade em que a chefe “telefonou para familiares pedindo que alguém fosse buscá-la”, o que não foi suficiente, tendo ela falecido na terça-feira, em um hospital em Miguel Pereira. Pouco antes da morte, chegou o resultado positivo da patroa.
Diante do exposto, evidencia-se o fato de que a pandemia atual não pode ser isolada de todas os demais problemas sociais, como o racismo e a desigualdade socioeconômica. É de conhecimento geral, seja pelos meios de informação oficial ou pelas consequências materiais percebidas no cotidiano, que o isolamento social é um dos principais meios de combate à contaminação pelo vírus. Assim, as medidas de distanciamento foram adotadas, pelo Estado, orientando que as pessoas ficassem em suas casas. Todavia, em territórios como favelas e ocupações, o potencial isolamento social traz à tona outra questão: como ficar em casa, sem o mínimo de infraestrutura e segurança? Ademais, a desigualdade de classes evidencia a necessidade de se ponderar sobre as vidas que têm direito ao luto e as que não têm. O resultado dessa análise, por seu turno, transparece as heranças do colonialismo, as quais, só ao serem escancaradas, podem ser combatidas.
Ainda neste contexto de dor e medo, há o sofrimento causado pelas mortes que não são provocadas diretamente pela COVID-19. A exemplo disso, tem-se o assassinato João Pedro, que, em 18 de maio de 2020, brincava com os primos dentro de casa – conforme orientado pelos profissionais da saúde – quando foi atingido por um tiro de fuzil, durante uma operação conjunta realizada pelas polícias Civil, Militar e Federal, que alegaram cumprimento de mandado judicial no combate ao tráfico de drogas no Complexo do Salgueiro, em Duque de Caxias (ressalte-se que ninguém foi detido nessa operação).
Outro caso explícito dessa situação é o desaparecimento de três crianças negras em 27 de dezembro de 2020, em Belford Roxo, no Rio de Janeiro. Os três meninos, de 8, 10 e 11 anos, desapareceram enquanto brincavam perto de casa. Já se passaram mais de 100 dias desde o desaparecimento. Onde está a intervenção do Estado neste caso, e por que a polícia responsável pelo caso contribuiu para o atraso nas investigações, omitindo as imagens obtidas por uma câmera de segurança (Betim, 2021)?
A mais recente operação policial assassina a ganhar espaço na mídia foi realizada na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, em 06 de maio de 2021. Esse episódio, que configurou a segunda maior chacina da história do estado, terminou com a morte de 25 pessoas, sendo uma delas um policial, e o restante rotulados como “suspeitos” pelos militares. Conforme trecho de reportagem elaborada pelo jornal EL PAÍS,
Também circulam fotografias do interior de algumas casas. Nelas, paredes e pisos aparecem com marcas de bala e grandes manchas de sangue. “Tenho uns 10 relatos de pessoas contando que a polícia entrou em suas casas revistando e jogando tudo para cima. A favela inteira está tomada”, afirma o morador. Em um áudio recebido por este jornal, outra pessoa relata a seguinte cena: “[…] Invadiram a casa de uma senhora e torturaram o cara aqui dentro, a casa está toda suja de sangue”. Outra também relatou que em uma residência havia quatro mortos em uma laje e que os agentes não deixavam ninguém entrar.
Sendo o isolamento social a medida mais eficaz contra o vírus, há que se refletir sobre quais são as condições oferecidas para que algumas famílias fiquem em casa. Comumente, os lares são percebidos por meio de uma ótica atrelada à paz e tranquilidade. Entretanto, em residências periféricas as possibilidades de calmaria e segurança são ameaçadas. Com o direito à inviolabilidade de domicílio reiteradamente violado, mães de jovens negros habitam lares inseguros, pois sabem que a qualquer momento a polícia pode entrar e assassinar seus filhos. O descaso estatal se mostra também como um forte aliado no desprezo, não só de jovens e crianças negras, mas também das mães destes, que convivem diariamente com a possibilidade quase certeira de que perca um filho pela violência.
Em contrapartida, em junho de 2020, o Ministro do STF Edson Fachin decidiu liminarmente pela proibição de ações policiais durante a pandemia, o que foi ratificado pelo plenário da Suprema Corte em agosto, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, também conhecida como ADPF das favelas. Não obstante essa decisão, a polícia continuou invadindo favelas e fazendo vítimas, conforme já explicitado. Assim, verifica-se, que, para a parte marginalizada da população, a pandemia não é um período de exceção da violência, “mas certamente se trata de um momento de aceleração e aprofundamento do genocídio.” (SILVA; GOMES; BRITO, 2021, p. 07)
Dessa forma, é inegável que a violência policial, que permanece enquanto o mundo tem sua atenção voltada ao combate ao COVID-19, tem de ser analisada pelo viés de raça e de classe. A juventude negra continua a ser assassinada com grande naturalidade, uma vez que os jovens negros habitam estruturalmente uma posição de suspeitos. O descaso com o desaparecimento das crianças negras, como retratado na reportagem supracitada, encontra razões em um racismo estrutural que enxerga crianças negras como parte protagonista de um cenário criminoso. A intervenção do Estado sobre essa criminalidade é intensa, localiza-se em regiões periféricas e mais uma vez explicita não só o desejo estatal de banir determinados crimes, mas também pessoas pré-definidas. O ponto comum em toda essa suspeição e violência é um: são pessoas negras. Neste cenário, o direito à maternidade negra é extraído todos os dias, de maneira sorrateira e naturalizada, pois, por mais que o Estado e os meios de comunicação tentem esconder a humanidade das vítimas da violência policial, tratando-as como “bandidas”, “traficantes” e “criminosas”, elas têm famílias, sobretudo mães, que choram as suas mortes e buscam justiça e respostas. Como diz Gonzaga & Cunha (2020, p. 9),
O racismo é pandêmico e não tem critério geracional de risco. Ser mãe de uma criança negra é ter sempre em pauta a sobrevivência de sua prole diante de um Estado que foi estruturado sem admiti-las como humanas.
Neste triste cenário, no entanto, é indispensável reconhecer e registrar que onde há opressão, há resistência. E sempre houve, desde a escravidão, quando mulheres negras escravizadas abortavam como maneira de resistir, por exemplo. E contar a história apagando a luta dos vencidos é estratégia da classe vencedora. Atualmente, movimentos como Mães de Acari, Reaja ou será mort@, Comitê contra a violência Policial de Goiás, Mães de Luto e Luta e Independente Mães de Maio são exemplos de lutas contra a violência policial no país. Débora Maria da Silva e Danilo Dara, representantes da última organização mencionada, escreveram:
Sabemos, porém, que nossa luta se insere numa longa tradição de resistência popular iniciada neste território batizado por eles de Brasil (nome de uma mercadoria colonial) desde o momento em que o primeiro indígena foi massacrado nestas terras, ou que o primeiro africano foi sequestrado do outro lado do Atlântico Negro. Nós nos situamos historicamente nessa resistência de longa duração, atualizada nesses ditos “tempos democráticos”, contra este longo genocídio negro, indígena e popular, contra a classe trabalhadora destas terras, genocídio cuja escala só aumentou e as técnicas apenas se aprimoraram no Brasil pós-ditatorial”.
Diante das discussões apontadas, comprova-se que, mesmo o momento atual, cujo foco são questões de saúde e luta pela sobrevivência, traz à tona uma verdade estrutural e negligenciada ainda hoje. Ser negro do Brasil apresenta reverberações que ultrapassam as lembranças históricas. Pessoas negras são naturalmente suspeitas e ao serem violentadas e assassinadas, suas famílias recebem justificativas falhas e inconsistentes, mas que são aceitas socialmente. Mães de jovens negros carregam consigo a inquietação de não saberem por quanto tempo ainda serão mães de filhos vivos. A pandemia do novo Coronavírus evidenciou mais um retrato do racismo estrutural brasileiro: as consequências de qualquer acontecimento são explicitamente organizadas a partir da desigualdade de raça e classe que hierarquiza a vida dos brasileiros.
Por Lívia Vieira e Marcela Oliveira
Referências Bibliográficas
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