A Clínica de Direitos Humanos da UFMG acompanha a luta por direitos do povo Krenak desde 2015. Esse povo, descendente dos Botocudos, vive em terras tradicionais à margem esquerda do rio Doce e têm sua história marcada pela violência institucional.
De início, com a implantação da linha férrea Vitória a Minas (1904-1910) ocorreu a divisão do seu território tradicional e, consequentemente, o isolamento dos indígenas de modo crescente na margem esquerda do rio, gerando dificuldades no deslocamento entre o espaço que residem e o local onde realizam tradicionalmente seus rituais religiosos.
Mais tarde, por volta de 1958, ocorreu uma diáspora forçada, ou seja, os índios foram obrigados a se mudar por causa de um suposto ataque de dinamite à residência do Chefe do Posto Indígena em que estavam situados. Os Krenak foram, então, levados por um caminhão pertencente à Guarda Florestal para o Posto Indígena Engenheiro Mariano, na divisa do Estado de Minas Gerais com a Bahia, onde vivia o povo indígena Maxakali.
Por sua vez, durante a Ditadura Militar (1964-1985), ocorreu a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN), a instalação de um presídio chamado de “Reformatório Krenak”, onde índios de diversas partes do país eram presos sob condições arbitrárias e alegações de embriaguez e por terem deixado a reserva indígena onde residiam sem autorização prévia da guarda – o que era ilegal na época.
Nesse mesmo período foi criada a “Guarda Rural Indígena”, onde os próprios índios eram treinados sob a lógica militar com o objetivo de serem eles os guardas do reformatório. Em 1972 ocorreou o deslocamento forçado dos presos para a fazenda Guarani, no município de Carmésia (MG), que também funcionou como centro de detenção arbitrária de indígenas.
Já no período democrático, em 1997, foi construída a Usina Hidrelétrica de Aimorés, sem a realização de consulta prévia, livre e informada à comunidade. Dessa obra, decorreram consequências nefastas: algumas espécies de peixes que costumavam servir como alimento e produto de comércio tiveram suas rotas de migração alteradas, a área de inundação atingiu locais culturalmente importantes para o povo e foram atingidos também uma série de sítios arqueológicos significativos para a identidade dos povos indígenas da região.
Em 2015, na cidade de Mariana, em Minas Gerais, a barragem de Fundão se rompeu e lançou violentamente mais de 48 milhões de metros cúbicos rejeitos de minério no meio ambiente, contaminando o rio Doce, conhecido pelos Krenak como Uatú. A contaminação representou a morte de um elemento central na cultura e identidade coletiva desse povo. Uatú significa “grande irmão” na língua Krenak e é uma espécie de elo sagrado entre passado, presente e futuro, além da principal referência de demarcação do território de pertencimento e abrigo. A morte do Rio Doce é, portanto, a morte de um parente, de um sagrado em diálogo intrínseco com a natureza e a moralidade.
Como já narrado, essa catástrofe-crime não é um episódio isolado na história do povo Krenak, há todo um histórico de violações pelas quais este povo já passava em período anterior. Há ainda de se destacar que, a Estrada de Ferro Vitória a Minas, que obrigou a diáspora forçada dos indígenas, hoje é administrada pela mesma empresa que detém 50% do controle da Samarco Mineração S/A, a Vale, empresa essa responsável pela barragem de minério que se rompeu em Mariana (MG).
Recentemente, em abril de 2017, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, do MPF, apresentou a Nota Técnica n° 03/2017-6ªCCR/MPF referente ao requerimento de Anistia Coletiva ao Povo Krenak. Essa medida visa a execução de mecanismos de justiça de transição com o reconhecimento das graves violações ocorridas contra os Krenak pelo regime militar. Sustenta ainda que a Portaria nº 2.523/2008 viola a Constituição de 1988 e o controle de convencionalidade.
Por fim, ressalta que quanto às reparações, a Comissão de Anistia deve realizar uma consulta prévia (de acordo com a Convenção n° 169 da OIT), para que os povos indígenas possam decidir a forma que consideram adequada para garantir a reparação do dano provocado à identidade coletiva do grupo.
Nesse contexto, a Clínica de Direitos Humanos da UFMG atuou junto do povo Krenak desde 2015, quando rompeu a barragem de Fundão. Seguidamente, conduzimos um diagnóstico preliminar de danos no âmbito do fundo Rio de Gente/Greenpeace (2016-2017) e, desde então, realizamos eventos, reuniões e oficinas com representantes dos Krenak. Recentemente, a Clínica trabalha na redação de uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a fim de que sejam declaradas as violações de direitos humanos cometidas contra o povo Krenak e que eles possam ser reparados por tais danos.
REFERÊNCIAS
6ªCCR/MPF. Nota Técnica nº 03/2017. ANISTIA POLÍTICA COLETIVA A POVOS INDÍGENAS. Datada de 03 de abril de 2017. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/copy_of_DocumentoAdministrativoPGR00095172_2017.pdf. Acesso em 17/04/2019.
DOCUMENTÁRIO. Reformatório Krenak (2016). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Qpx8nKVXOAo. Acesso em 17/04/2019.
PARAÍSO, Maria Hilda B. Os botocudos e sua trajetória história. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.). História dos Índios no Brasil. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.