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A adoção no âmbito legislativo brasileiro: uma disputa de narrativas

No dia 20 de abril, o Presidente da República vetou o Projeto de Lei n° 8.219/14[1], que buscava modificar a redação do art. 39, §1°, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O objetivo da alteração seria inserir o termo “tentativas de reinserção” à redação do artigo, que passaria a ser “A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção e as tentativas de reinserção da criança ou do adolescente na família natural ou extensa”.

Ainda que seja expressa no texto legal a excepcionalidade da medida de adoção, a proposta do PL nos leva a refletir sobre a inversão das prioridades garantidas pelo ECA à família natural: o que se vê, na prática, é a prioridade conferida à adoção em relação à família natural, que fica preterida. Esse cenário encontra espaço em uma disputa no âmbito do Legislativo, uma vez que, de um lado, temos o PL 8.219/14 que busca reforçar a ideia de permanência da família natural enquanto que, por outro, temos o PL 4414/20, que pretende acelerar o processo de adoção. Emergem, dessa forma, dois contextos familiares em conflito, quais sejam a família natural e a família adotiva, criando uma judicialização das relações familiares através desse embate jurídico[2].

A adoção de crianças e adolescentes pode ser definida, de acordo com o art. 41 do ECA, como ato jurídico excepcional e irrevogável que “atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”.

O PL 8.219/14, que é de autoria do Senador Antonio Carlos Valadares (PSB/SE), foi apresentado em dezembro de 2014 e teve como relator o Deputado Diego Garcia (PODE/PR). A justificativa para sua proposição reside no fato de que, ainda que sejam reconhecidos outros laços relevantes que se aproximam daqueles das relações familiares, como a tutela e o apadrinhamento, a adoção é um dispositivo que extingue os laços familiares antecedentes e por isso não podemos ser omissos quanto ao esgotamento das tentativas de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa. Dessa maneira, o autor do PL entendeu que há uma lacuna na legislação, já que ela não abarca as tentativas de reinserção da criança ou adolescente na família original[3].

Em contramão, o veto, aconselhado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, teve como principal alegação o argumento de que o PL aumentaria o prazo para concretizar a adoção, o que poderia prejudicar a construção de vínculos entre a família adotante e a criança[4].

Diante dessa discussão, qual seria a leitura mais adequada, à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente? Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, emergiu a concepção da criança como sujeito de direitos que devem ser preservados e protegidos, tanto pelo Estado quanto pela sociedade e pela família. Dentre esses direitos, há o direito à convivência familiar e comunitária, presente no art. 19, que assegura à criança e ao adolescente o direito de crescer no seio de sua família natural e extensa.

Em razão da excepcionalidade da medida de adoção, e em observação à garantia da convivência familiar, é primordial que todos os esforços sejam feitos para a manutenção da criança no seio de sua família biológica[5], cuidando para que a adoção só seja possível após o esgotamento de todos os recursos possíveis e tentativas de reintegração da criança ou do adolescente no seio familiar, conforme havia sido proposto pelo PL 8.219/14.

Sobre esse aspecto, deve-se ter em mente que a reintegração não é apenas física, mas também psicológica, envolvendo a reconexão dos vínculos da criança ou adolescente com a sua família de origem. Como vimos anteriormente, a redação do art. 39 do ECA condiciona a adoção ao fracasso dos recursos de manutenção da criança na família natural, mas nada menciona sobre o esgotamento das tentativas, o que abre margem para interpretações diversas que podem levar ao não cumprimento desses preceitos.

Resta claro, portanto, que a mudança legislativa não seria prejudicial à criança ou adolescente, ao contrário, seria mais uma maneira de oportunizar a preservação dos laços familiares naturais, que são de extrema importância para o crescimento e formação de crianças e adolescentes. Essa preservação dos laços é entendida pelo legislador como uma garantia fundamental, em respeito à dignidade da pessoa humana, à parentalidade responsável e ao livre planejamento familiar, sendo um dever do Estado a garantia de recursos que o permitam, e vedada a intervenção no livre exercício desses direitos, conforme o art. 226, §7º da Constituição de 1988.

Não é esse, contudo, o cenário que se observa no país atualmente. A bem da verdade, percebe-se uma disputa narrativa em torno da adoção, compreendida por alguns atores políticos como medida prioritária, na contramão do preceituado pelo ECA. Um exemplo disso é o Projeto de Lei nº. 4414/2020, que tramita no Senado Federal, que propõe uma modificação no art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecendo condições excepcionais para o processo de adoção de crianças acolhidas durante a pandemia. A ideia é que as crianças que se encontram em unidades de acolhimento institucional sejam cadastradas para adoção caso seus genitores não sejam encontrados no prazo de 30 dias.

Ao propor uma aceleração no processo de adoção no período da maior crise sanitária vivenciada pelo país, o Projeto de Lei impede a realização dos princípios do Estatuto, pois não prioriza a permanência da criança em sua família natural e extensa e não reconhece a adoção como medida excepcional, que só deve ser utilizada em um cenário de esgotamento de outros recursos.

Cabe-nos, assim, a visão crítica ao cenário que se desenha no âmbito legislativo, tendo em vista que ambos os Projetos de Lei aqui tratados caminham em direções opostas. Enquanto um PL propõe que o esgotamento das tentativas de reinserção familiar seja um requisito essencial previsto em lei, o outro tenta torná-lo dispensável em um momento de pandemia e calamidade pública.

Portanto, tendo em vista o veto ao Projeto de Lei n° 8.219/14 e a apresentação do Projeto de Lei nº. 4414/2020, é notável que há, neste momento, um embate político sobre a adoção no país. Neste ponto, cabe-nos uma reflexão de que, para além de uma disputa legislativa, o embate trazido aqui demonstra um conflito entre diferentes concepções de família sobre quais direitos devem ser tutelados.

As famílias que perdem seus filhos são, muitas vezes, pobres, negras e vulnerabilizadas socialmente, enquanto que as famílias adotantes são, em sua maioria, de classe média e brancas, vistas pela maioria da sociedade como mais adequadas para garantir o desenvolvimento saudável das crianças. Dessa forma, nota-se que as tentativas de aceleração do processo de adoção demonstram, também, uma realidade de discriminação das famílias vulneráveis, visto que o que se busca é dirimir as tentativas de reinserção das crianças nestas famílias.

Se por um lado, alguns setores buscam garantir a reinserção da criança e do adolescente na família natural, respeitando o direito à convivência familiar e comunitária, outros buscam suprimir essas garantias, utilizando como subterfúgio a crise sanitária provocada pela Covid-19, em um momento de aprofundamento das vulnerabilidades sociais.

Dessa forma, é importante que estejamos atentas e atentos à maneira como essas alterações legislativas são realizadas. E, para além disso, que utilizemos das plataformas disponíveis para demonstrar nossa satisfação ou insatisfação com as modificações propostas.

 

Por Maria Clara Vieira Martins Farias e Rafaella Maria Carvalho Rodrigues

 

[1] Mensagem integral do veto publicada no Diário Oficial da União, em 20/04/2021. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=20/04/2021&jornal=515&pagina=9&totalArquivos=175.

[2] MOREIRA, Maria Ignez Costa. Os impasses entre acolhimento institucional e o direito à convivência familiar. Psicol. Soc., Belo Horizonte , v. 26, n. spe2, p. 28-37, 2014.

[3] Parecer do Relator, Dep. Diego Garcia (PODE-PR), pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa. Disponível em:   https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1808044&filename=PRL+1+CCJC+%3D%3E+PL+8219/2014.

[4] Bolsonaro veta na íntegra projeto que muda Estatuto da Criança e do Adolescente. CNN Brasil. Publicado em 21/04/2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/04/20/bolsonaro-veta-integralmente-pl-que-alteraria-condicoes-no-eca-para-adocao.

[5] Art. 92.  As entidades que desenvolvam programas de acolhimento familiar ou institucional deverão adotar os seguintes princípios: I – preservação dos vínculos familiares e promoção da reintegração familiar; II – integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família natural ou extensa; (…).

 

Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei n° 8069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.pl12analto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.

Bolsonaro veta na íntegra projeto que muda Estatuto da Criança e do Adolescente. CNN Brasil. Publicado em 21/04/2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/04/20/bolsonaro-veta-integralmente-pl-que-alteraria-condicoes-no-eca-para-adocao.

MATTAR, Laura Davis. Direitos maternos: uma perspectiva possível dos direitos humanos para o suporte social à maternidade. 2011. Dissertação (Doutorado) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011.

MOREIRA, Maria Ignez Costa. Os impasses entre acolhimento institucional e o direito à convivência familiar. Psicol. Soc., Belo Horizonte , v. 26, n. spe2, p. 28-37, 2014.

SCHWEIKERT, Peter Gabriel Molinari et al. O caminho necessário do processo de adoção – pela proteção integral dos direitos da criança e do adolescente. Revista Liberdades, n. 22, 2016, p. 115-127.

 

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado