No dia 03 de abril de 2016, foi realizado o XIX Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Uma das questões da prova abordou a temática do conflito entre a reivindicação do nome social por uma travesti e a utilização do registro civil. A elaboração de questões consoantes com demandas prementes da sociedade demonstra abertura e atenção a reivindicações historicamente negligenciadas pelo campo jurídico.
A Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais, enquanto programa de pesquisa e extensão voltado à promoção e à defesa dos direitos humanos, entende que o fomento à discussão e à reflexão obrigatória dos direitos das travestis proporcionado pela questão é digno de reconhecimento. Porém, o processo de diálogo constante é de fundamental importância, principalmente com os sujeitos com os quais lidamos em nossa prática jurídica cotidiana. Nesse sentido, embora se reconheça a iniciativa da Ordem, o enunciado carece de atenção pormenorizada, tendo em vista a realidade social que se pretendeu contemplar.
Eis a redação da questão 22: “Você, na condição de advogado, foi procurado por um travesti que é servidor público federal. Na verdade, ele adota o nome social de Joana, embora, no assento de nascimento, o seu nome de registro seja João. Ele gostaria de ser identificado no trabalho pelo nome social e que, assim, o nome social constasse em coisas básicas, como o cadastro de dados, o correio eletrônico e o crachá” (grifo nosso).
As travestis, como aponta Jaqueline Gomes (2012), “independente da forma como se reconhecem, preferem ser tratadas no feminino”, sendo ofensivo o uso de adjetivos e artigos masculinos como fora feito na redação da questão acima transcrita. Uma série de pesquisadores e militantes tem adotado o uso das formas de tratamento no feminino em respeito e reconhecimento à legitimidade dessa demanda. A ABGLT publicou uma cartilha de orientação às mídias em geral – “Manual de Orientação LGBT” – orientando sobre as formas mais adequadas de se referenciar essa população.
Uma vez que a linguagem é uma ferramenta de produção e reprodução de sentidos, de diferenciações e de identidades, a utilização do pronome masculino para fazer referência a uma travesti reflete não apenas uma das inúmeras violências a que elas estão diariamente submetidas, mas também a negação de suas demandas, desde as mais básicas, como o uso da flexão no gênero feminino. A utilização desses termos corrobora, portanto, para reforçar um pensamento já presente na sociedade, de subjugação e marginalização das identidades trans.
O advogado, justamente por exercer uma função pública de amplitude social, imprescinde de uma formação sensibilizada, atenta à efetivação dos direitos fundamentais. Nessa perspectiva, a prática jurídica não pode estar desvinculada da realidade social, sob pena de perpetuação de violações e de continuado impedimento do acesso à justiça – direito humano básico, primordial para a fruição dos demais.
Paralelamente, o advogado deve amparar seus clientes de forma ética a partir de uma relação recíproca de confiança, compreensão e respeito às individualidades, necessidades e demandas.
Nesse sentido, a Clínica de Direito Humanos da UFMG pontua que as reflexões em torno das demandas das travestis, como ensejadas pela questão da prova, são importantes, mas devem ser aprimoradas, sobretudo com a abertura do diálogo e escuta das pessoas diretamente concernidas.